Escritora Paloma Franca Amorim, autora de 'Eu preferia ter perdido um olho', explica por que deixou de escrever sua coluna no jornal 'O Liberal', do Pará, espaço que ocupava desde os 18 anos. Ao pedir explicações sobre a ausência do texto, fiquei sabendo que deve ter sido uma decisão do diretor da redação, Lázaro Moraes. O texto estava para ser rodado e no dia seguinte havia desaparecido da edição impressa.
Há doze anos escrevo em uma coluna semanal no caderno de cultura Magazine do jornal O Liberal, pertencente à família Maiorana, que circula no estado do Pará, Amazônia, região onde nasci e vivi ao longo de dezoito anos antes de me radicar na cidade de São Paulo. Nos últimos meses, tenho travado uma disputa política com o secretário de cultura do governo do PSDB no Pará, há mais de vinte anos na cadeira, Paulo Chaves, e com o conselho organizativo da Feira Pan Amazônica do Livro, evento que existe há vinte e dois anos na cidade de Belém e que em 2018, pela primeira vez, teve uma extensão pelas vias de um Salão do Livro no sul e no sudeste do estado, na cidade de Marabá.
As questões levantadas a respeito da Feira, publicadas inclusive nacionalmente em um artigo meu no jornal Folha de S. Paulo, dizem respeito à ausência de autorias paraenses na programação principal somada à aviltante condição de silenciamento de vozes de escritoras/artistas afroindígenas na mesma grade.
Na semana seguinte à publicação do artigo na Folha, viajei para Belém a fim de cumprir uma agenda de encontros literários à margem da Feira, como a Roda de Escritoras Paraenses e o projeto Literatura por Elas, para estruturar uma participação nas reivindicações também no sentido presencial e prático. Nesse período, escrevi a crônica "Necrópole" que deveria ter sido publicada em O Liberal no dia 9 de maio. Em doze anos foram raras as vezes em que deixaram de publicar algum texto meu, esses parcos episódios que conto nos dedos tiveram relação com falta de espaço no jornal em razão de matérias culturais "quentes" ou com a demanda de anunciantes que há muito povoam massiva e politicamente as páginas de O Liberal.
Ao pedir explicações sobre a ausência do texto, fiquei sabendo que deve ter sido uma decisão do diretor da redação, Lázaro Moraes. O texto estava para ser rodado e no dia seguinte havia desaparecido da edição impressa.
"Necrópole" é uma crônica que fala sobre Belém em suas nuances mais agudas de violência e apagamento simbólico de corpos que não seguem as cartilhas moralistas e corruptas das elites locais. Ali eu comento sobre a ausência de autoras negras, indígenas e não-brancas na XXII Feira Pan Amazônica, sobre as chacinas constantes na cidade de Belém e nos interiores do Pará (em quatro anos, a saber, foram contabilizadas mais de 14 mil pessoas mortas em situações de aniquilamento urbano e rural, muitos deles cometidos pelas milícias do estado) e, finalmente, sobre o fechamento dos espaços culturais alternativos da cidade, trucidados em meio ao caos da ausência de segurança pública e dos processos de gentrificação nos centros e arredores, a expulsar ainda mais para as periferias os sujeitos periféricos já sistematicamente desassistidos pelas autoridades locais.
Sobre esse tema, acho importante destacar que a ocupação do Pará por ações anti-hegemônicas faz parte da história da população. Para exemplificar, recorro ao movimento de cultura popular do carimbó muito conhecido pela atividade de Mestre Verequete que lutou contra o racismo e contra a exclusão dos pobres sobretudo na década de 70.
Aqui assinalo também um movimento mais recente, de 2013, quando os trabalhadores da cultura demitiram simbolicamente o secretário Paulo Chaves num front de resistência à precarização das políticas públicas de cultura no estado do Pará. Essa e outras ações foram veiculadas no portal Rede Brasil Atual.
Também a partir de 2013, a Feira Libertária na Praça do Carmo se tornou um circuito interessante de comércio sustentável em espaço público. Logo em seguida, começou a haver assédio policial sobre o evento alvejando, sobretudo, corpos trans, não binários, desatrelados de uma esfera de sexualidade normativa. Em algumas dessas situações de violência institucional, muitos companheiros foram agredidos e conduzidos de forma arbitrária à delegacia. Um amigo meu, gay e morador da Terra Firme, foi sufocado num mata-leão policial e depois lançado à frente de um carro em movimento.
Em 2015 ocorreu o gravíssimo caso do 8 Bar Bistrô, estabelecimento popular no centro, administrado por minha amiga de infância, minha irmã do coração, Karlanna Cordovil, e por seu companheiro João Paupério. Os dois se recusaram a pagar propina para a Polícia Civil e tiveram plantadas em sua casa 44 petecas de pasta base de cocaína. Por causa de uma ação conjunta dos frequentadores do 8, do apoio de movimentos sociais e de denúncia midiática, Kaká e João foram soltos e a acusação foi anulada no despacho do juiz Flávio Sanchez Leão - justo e por isso mesmo, infelizmente, exceção no estado do Pará.
A história do 8 Bar Bistrô foi citada há algumas semanas no programa Greg News do Gregório Duvivier, sobre prisões, na HBO. Kaká e João hoje vivem fora do país, exilados pelo medo das ameaças policiais.
Escrevi "Necrópole" tomada por esses atravessamentos políticos e sociais, mas sem perder de vista todo o profundo amor que sinto por minha cidade e pelo povo que resiste muito bravamente ao desmonte de seus direitos. Não à toa, constituo contraste importante ao fim do texto: "A Necrópole da Amazônia, Belém do Pará, ainda não deixou de ser o cemitério onde eu nasci.".
Por ingenuidade ou por acreditar que as coisas estavam melhorando, não achei que pudessem vetar um material tão intenso que agregou poesia e crítica na mais honesta das intenções literárias e jornalísticas. Quando não vi meu texto publicado, me assombrou o óbvio, a revelação trágica da qual eu estupidamente não podia suspeitar por estar mergulhada há doze anos no meu fazer literário apaixonado como cronista fixa do jornal O Liberal: eu fui censurada. E responsabilizo a família Maiorana, o secretário de cultura Paulo Chaves, o governador do estado do Pará, Simão Jatene, as elites culturais paraenses e o PSDB.
O governo do estado, o jornal O Liberal, a XXII Feira Pan Amazônica do Livro, tentaram calar minha voz de escritora e de cidadã.
Tentaram calar minha voz de mulher preta, autora de textos que falam muito bem sobre nossas paisagens amazônicas (falar da chuva não os ofende), sobre memória (aí já ofende um pouco, porque as memórias de uma mulher filha da classe trabalhadora na Amazônia nem sempre são bucólicas e românticas como esperam), sobre sexualidade e erotismo (nesse ponto comecei a ser agredida com emails, comentários públicos e fofocas na cidade, nos microfeudos coronelistas, a respeito de minha jornada pessoal, minhas escolhas e o meu direito à liberdade afetiva e sexual).
O poder tentou calar a minha voz, mas foi em vão. "Necrópole" foi a crônica mais lida e compartilhada nas redes sociais, pelo norte, nordeste e sudeste. Circulou no centro e nas periferias de Belém em saraus e em comunidades de slam com o apoio, por exemplo, das manas do Dandaras do Norte.
Minha voz não tem limites, como a de qualquer outra autora do estado do Pará, como a de qualquer outra mana não branca, latinoamericana, preta, indígena, das letras e da oralidade no Brasil e no mundo. Jamais estancaremos a disputa pelos territórios que nos pertencem por direito e pela força de nossa ancestralidade. Nossos passos vêm de longe. E, se para caminhar, precisarei me desligar de um jornal que foi meu teto editorial durante 12 anos, eu o farei - não com pouca dor, mas com uma certeza moral e ética que é o meu colete à prova de arrependimentos.
Por isso, diante da censura sobre minhas palavras, impingida por O Liberal, eu me despeço de minha coluna, com meu máximo respeito àqueles que lá dentro se esforçam ainda para produzir um jornalismo de qualidade no Pará, e profundamente apaixonada pelos leitores que me acompanharam e que me fizeram não ter dúvida alguma da qualidade do meu trabalho.
Ocupei com excelência o espaço das quartas-feiras no Magazine, desde os 18 anos de idade, e isso ninguém pode tirar de mim. O resto não é e jamais será silêncio, é brado e mistério. E o mistério é um bonito convite à vida e à arte em suas máximas intensidades.
Para finalizar deixo aqui uma prosa poética que rebentou de mim quando fiquei sabendo da censura.
DIGAM AO GOVERNADOR
Um corpo no meu e os segredos dessa cidade. O varal nu por causa da chuva. Na bacia calcinhas enlaçam vestidos. Olhares fortuitos por entre os muros das casas ladeando as esquinas de torpor e desejo. Há um suor notívago no início de tudo. Tudo é um silêncio porque se ofendem os homens de bem, esses espectros sem rosto que nos querem abaixo do som mínimo da voz num
sim, senhor
não, senhor
sim, senhor
Esse coro feudal decadente
Somam-se em mim os sonhos que escaparam da morte.
Ontem cortaram minhas mãos e eu aprendi a escrever com o céu da boca.
Puseram-me numa camisa de força onde se podia ler
- cuidado contém o extrato de uma vagabunda -
O infinito onde tomávamos cerveja foi incendiado. Despertei assustada e achei que fosse verdade. Fui até olhar a cozinha para ver se o Felipe tinha esquecido o café no fogo.
Na madrugada seguinte, o pesadelo era o meu corpo, numa rede, todo retalhado, em exposição. Chorei de desespero. Depois me desdobrei no vento. Cada gota de chuva pendular sobre o telhado é uma explosão familiar. Eu venci. Eu venci. Porque sou filha do sol minha carne é novamente inteira e cálida. Hoje escrevi a primeira palavra do mundo.
(Embora me queiram jantar fêmea, feia, com uma corda no pescoço)
Eu escrevi a primeira palavra do mundo.
Digam ao governador que eu escrevi a primeira palavra do mundo.
E ela é grande.
Digam também que eu gosto tanto de literatura quanto gosto de comida e de sexo.
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