Como dizia um antigo programa infantil da televisão brasileira, senta que lá vem história. A época era o final da década de 1990 e o lugar era o ABC paulista. Celular era exclusividade de gente rica e quem tinha internet em casa era somente por conexão via rede telefônica. Mas o Napster estava fazendo com que jovens com fome de som estivessem, em questão de poucos meses, começando a ter acesso a mais gravações musicais do que jamais tinham conseguido acumular em suas vidas inteiras.
No Brasil, viviam-se os efeitos de uma crise de desemprego e de baixo crescimento econômico, vindas na esteira das mesmas medidas que haviam tirado o país do cenário anterior de hiperinflação. Lula já tinha tentado, mas nunca vencido uma eleição para presidente e os protofascistas ainda se misturavam à multidão sem possuírem formas de representação que lhes dessem uma identidade clara (exceto pela existência de pequenos nichos neonazistas, mas deixa eles para lá).
Foi nesse cenário que um grupo de oito moleques com seus mais ou menos vinte anos, vindos de outros projetos musicais ainda mais antigos e obscuros da cidade, formaram o Paiakan. A proposta estética da banda era a de criar uma música que soasse chocante e desconcertante, mas buscando executar esse caos sonoro com o máximo de apuro técnico que fosse possível alcançar.
As influências para isso estavam dadas basicamente pelo trabalho que bandas como o Mr. Bungle, mas também outras menos radicais, como o próprio Sepultura, estavam fazendo na época. Enfim, as referências eram de grupos que misturavam estilos díspares entre si, negando-se a se prenderem aos parâmetros impostos pelos gêneros de mercado aos quais haviam sido associados. Mas, na necessidade de às vezes ter que explicar em poucas palavras o tipo de música que o Paiakan fazia, classificava-se o som da banda como jazzy death metal.
O Paiakan passou por várias entradas e saídas de integrantes desde que começaram os primeiros ensaios caseiros da banda, ainda em torno de 1996, mas permaneceu em sua formação mais estável desde que passou a ter como membros os músicos Xepah (guitarra e voz), Sallun (guitarra e voz), Carcaça (baixo), Cãozinho (teclados), Tiago (trompete), Nirso (trombone), Chris (percussão) e Xuxa (bateria).
Foi com essa, digamos, formação clássica que o Paiakan gravou o álbum intitulado "Zerinho de Kombi no Campão", totalmente produzido pelos próprios integrantes da banda na casa do guitarrista Sallun, usando um computador 486 com uma versão do Cool Edit Pro instalada, além de uma mesinha de som de 4 canais e um punhado de microfones emprestados de amigos. A mix final do álbum ficou pronta já na passagem de 2000 para 2001 e circulou, na forma de CDR (sem capa ou qualquer outro tipo de tratamento visual) apenas entre amigos.
O fato é que, na época em que finalmente conseguiu autoproduzir seu primeiro e único álbum, o Paiakan já estava se desfazendo enquanto projeto coletivo. Não apenas pela circunstância de que aos poucos foram aparecendo novas inclinações musicais entre os membros da banda, mas, talvez, sobretudo, por que as necessidades materiais da vida obrigaram vários de seus membros a se dedicar cada vez mais a atividades profissionais distintas da música.
Na verdade, nos seus aproximadamente seis anos de existência, o Paiakan fez pouquíssimas apresentações ao vivo, embora tenha se esforçado intensamente em ensaiar e arranjar suas composições. Até porque, embora evidentemente sonhassem com a consolidação profissional da banda, seus membros tinham uma motivação de criar e de tocar que era alimentada simplesmente pela amizade entre jovens desajustados socialmente que, por acaso, eram músicos e residiam no mesmo bairro da cidade.
Essa insistência em aprimorar as composições da banda, levou o Paiakan a compor as 11 faixas de "Zerinho de Kombi no Campão" com um nível de inventividade e de ousadia para os padrões musicais vigentes na época que imediatamente se percebe ao ouvir o álbum. Músicas às vezes longas, com mais de seis minutos, alternando partes de barulho extremo com trechos mais macios e goovados, tentando construir harmonias inusitadas e buscando expandir as fronteiras da exploração timbrística. Mas também há, entre o material do álbum, vinhetas de humor, música concreta adolescente e, claro, punk rock (na faixa "Potresto!", talvez a canção do Paiakan que mais repercutiu regionalmente ao seu tempo).
Conceitualmente, o Paiakan também buscava construir uma proposta à altura da sua ambição musical. As letras aparentemente nonsense da banda buscavam transmitir o sentimento de uma juventude do fim dos anos 90 atordoada com a derrocada dos anos de ouro do capitalismo, confusa diante da emergência de um pós-modernismo que, embora negasse as utopias e as perspectivas de futuro, de certa forma encorajou as pessoas a fazerem por si mesmas a sua história.
O próprio nome da banda, eventualmente questionado à época em que o Paiakan esteve em atividade, era uma referência ao cacique kayapó Paulinho Paiakan, que havia sido publicamente exposto por uma campanha difamatória movida a partir de um periódico jornalístico sabidamente vinculado a interesses das elites agrárias brasileiras, mas que foi, de fato, um importante líder da luta pelos direitos territoriais e pela autonomia dos povos indígenas no Brasil e, em particular, na Amazônia. Paulinho Paiakan recentemente faleceu em decorrência da política genocida do atual governo federal brasileiro durante a pandemia de Covid 19.
A banda Paiakan foi, então, modesta em seu alcance e até ingênua no sentido de se constituir como um produto do mercado musical, mas ousou o quanto pôde naquilo que se dedicou a fazer. Por essa razão, e a fim de buscar cobrir uma verdadeira
lacuna que até o presente momento ainda existia na história da música de subúrbio brasileira, é que o selo Braçal Discos, sediado o na cidade de Belém do Pará, vem agora publicamente a anunciar a chegada da versão remasterizada e definitiva de "Zerinho de Kombi no Campão", mais de duas décadas após sua gravação. Masterizado pelo produtor musical Giancarlo Frabetti (a.k.a. Xepah) a partir dos arquivos de áudio originais, o álbum traz pela primeira vez uma qualidade sonora que busca tirar o máximo da potência do material gravado pela banda.
De modo que, agora, finalmente, temos como dizer que o (talvez lendário) disco do Paiakan está no ar. A partir de hoje você encontra "Zerinho de Kombi no Campão" em todas as plataformas digitais. Ouça no volume máximo.
O link para ouvir o álbum no seu serviço de streaming preferido já está disponível aqui ó: Zerinho de Kombi no Campão
O álbum é dedicado (in memorian) ao nosso querido amigo Fábio Rodrigues da Silva, que foi nosso maior apoiador e fã número um do Paiakan. Esteve presente em todas as apresentações ao vivo da banda e vira e mexe cantarolava os riffs de “Doze” no meio de alguma session de doideira nossa.
Texto: Giancarlo Frabetti