O rapper paulistano Emicida lançou, no dia (8), seu documentário AmarElo – É Tudo pra Ontem, em parceria com a Netflix. Em novembro de 2019, o artista ocupou o Teatro Municipal, no centro de São Paulo, para o show de lançamento de seu último álbum AmarElo. Entretanto, o registro desse evento teve um objetivo maior que a criação de um DVD musical e foi usado como base para um documentário sobre heróis negros brasileiros, apagados pelo passado, e a construção da cultura afrobrasileira.
Por Felipe Mascari | Rede Brasil Atual
Emicida sempre afirmou que AmarElo era um trabalho muito além da música e das rimas. Para ele, o disco é um “experimento social”. Em seu documentário, o rapper usa o show no Teatro Municipal como base para apresentar esse projeto, que transforma o rap em “neo-samba”.
Durante os quase 90 minutos de documentário, o rapper apresenta uma verdadeira aula de história – grande parte dela ocultada nos livros. Aborda as politicas de branqueamento da sociedade e o apagamento da cultura preta, colocando holofotes em personalidades negras invisibilizadas, como o arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira, conhecido como Tebas, a militante negra e antropóloga Lélia Gonzalez e a atriz Ruth de Souza, primeira negra protagonista de uma telenovela.
“Não sinto que eu vim, sinto que voltei. E, de alguma forma, meus sonhos começaram antes da minha chegada”, narra Emicida, logo na abertura do documentário. A frase exemplifica sua viagem no tempo, com a crença de que é possível antever o futuro quando se volta ao passado.
O Teatro Municipal
O show de lançamento de Emicida no Teatro Municipal é simbólico, e um marco temporal para a cultura preta. Por isso, a apresentação e os vídeos nos bastidores ditam a linha narrativa do documentário. O espaço cultural localizado no centro de São Paulo, palco do rapper naquele novembro de 2019, também deu lugar a outros momentos históricos.
Foi nas escadarias do Municipal, em 7 de julho de 1978, que centenas de manifestantes negros protestaram em razão da violência racial contra quatro garotos do time de voleibol infantil do Clube de Regatas Tietê e contra um homem acusado de roubar frutas em uma feira, que acabou preso, torturado e morto. Tudo isso no auge da ditadura civil-militar. Naquele dia, surgiu o Movimento Negro Unificado (MNU).
Como lembra Emicida em seu documentário, a ocupação do Teatro Municipal é uma reparação histórica. Apesar de construído por mãos negras, o local foi excludente para essas pessoas. Sua ocupação no Municipal não é só individual, mas coletiva. “A ideia é construir um movimento dentro de um espaço físico. Quando a gente subir naquele palco, vai ser a noite que transformou a vida de muita gente”, diz ele, no curta.
A Semana de Arte Moderna de 1922, que também ocorreu no mesmo teatro e é lembrada no filme, foi responsável por mudar as ideias gerais sobre a arte no país, exigindo feições mais nacionais e abrindo espaço para o samba. É aí que Emicida resgata não só o gênero como movimento político, mas também como elemento formador da identidade do rap nacional.
O neo-samba de Emicida
O documentário de Emicida é dividido em três atos: Plantar, Regar e Colher. Para reescrever a história, o rapper mostra a necessidade de se reconectar com a terra, para que seja possível resgatar suas raízes. Nos tempos atuais, esse movimento é necessário para a sociedade e para a política, e também para o hip-hop brasileiro.
A aula de história de Emicida apresenta novas perspectivas para essa cultura. Com o documentário, o artista mostra que, no Brasil, o rap não tem origem apenas com o DJ Kool Herc, nos Estados Unidos, na década de 1970. Os arquitetos Tebas e Teodoro Sampaio foram responsáveis pela mudança arquitetônica do centro da capital paulista, principalmente a região da São Bento, onde o hip-hop brasileiro ganhou vida.
Emicida deixa explícito como o rap tem muitas características do samba, sendo uma fonte direta e indireta de inspiração. Essa fusão do rap com a brasilidade sempre existiu, desde Ataliba e a Firma até Marcelo D2. A partir dessa reconexão com o passado e o gênero em AmarElo, Emicida classifica seu disco como “neo-samba”.
Assim como o samba, o rap brigou para ser reconhecido como uma arte relevante. Personagens como Clementina de Jesus e Adoniran Barbosa, que faziam retratos históricos do cotidiano, desaguam nas experiências atuais do rap. E é isso que Emicida busca escancarar, principalmente quando fortalece, durante o filme, a sua ligação com o sambista Wilson das Neves.
O documentário de Emicida mostra que AmarElo liga o passado ao futuro, trazendo a conexão entre marcos históricos e culturais. É uma apresentação do ciclo da natureza, onde tudo o que vivemos no hoje já aconteceu antes. Por isso, ao intitular o documentário como “É Tudo Pra Ontem”, o rapper aponta que há urgência nesse resgate ao passado.