Entrevista exclusiva: Ailton Krenak pisa suavemente na terra
01/08/2022 11:52 em Atualidades

Ju Abe (Imagens: Assessoria de Imprensa do Fórum e reprodução)

A décima edição do Fórum Social Pan-Amazônico, iniciada na última quinta-feira (28) e encerrando neste domingo, foi uma grande congregação de saberes de entidades, representantes, comunidades e organizações, buscando soluções e projeções de perspectivas para um futuro sustentável, plural e pacífico.

Um dos pontos altos do evento foi a exibição em primeira mão do documentário “Pisar Suavemente na Terra”, filme dirigido por Marcos Colón e roteirizado por Bruno Malheiros, que mostra três lideranças indígenas contando suas histórias de resistência , a partir da narrativa guiada pelo pensamento de Ailton Krenak. A exibição contou com a presença de duas destas três lideranças: Kátia Akrãtikatêjê e José Manuyama, além do próprio Krenak.

Eu tive acesso a uma entrevista concedida pelo filósofo a alguns assessores de imprensa e representantes de mídias locais. Com sua presença inspiradora, Ailton nos recebeu carinhosamente, respondendo com sabedoria a cada uma das perguntas feitas, nos suprindo de grande carga de conhecimento numa lucidez ímpar.

Não consegui coletar os nomes de todos os presentes, visto que o encontro foi bastante improvisado e possibilitado somente pela generosidade deste grande ser humano. Portanto, decidi apenas indicar as perguntas com o qualificador “entrevistadora (o)”, para que ninguém fosse excluído.

Veja a íntegra deste momento.

Entrevistadora- E sobre o “Pisar suavemente na Terra”…

Ailton Krenak- É impressionante aquelas imagens, daquele lugar (comunidade de palafitas à beira de um rio em Iquito, Peru) totalmente destruído , só lixo. E aquelas palafitas totalmente miseráveis. Quer dizer, as bordas da Amazônia estão derretendo, derretendo de pobreza, né. Com uma mentalidade idiota querendo progresso.

Entrevistadora- Teve aquelas imagens no Rio Doce, de onde a sua comunidade veio (rio atingido pelo desastre na Barragem pertencente às corporações BHP Billiton e Vale, em Mariana)…

Ailton Krenak- Destruído pela lama da mineração, que está completando sete anos.

Entrevistadora- E muitas pessoas ainda não foram punidas, como você mesmo fala no filme, as comunidades foram muito prejudicadas. Até hoje ainda lutam pra serem recompensadas pelo prejuízo e não conseguem né, porque a justiça é lenta…

Ailton Krenak- Não, porque a justiça prefere atender a outras prioridades. Ela não julga o interesse de uma comunidade ou de dezenas de comunidades. A bacia do Rio Doce são seiscentos quilômetros de extensão de um rio. Todo mundo ficou prejudicado. Quando eles foram cadastrar, deu 200 mil pessoas. 200 mil pessoas sem água, sem peixe, sem comida, sem nada, olha que desgraça enorme. E ainda por cima vem a pandemia aí vira um deserto, uma desolação. Pois bem, nós entramos com uma ação contra a BHP Billiton e a Vale do Rio Doce (corporações responsáveis pelo desastre), porque são as duas corporações globais que controlam o minério no mundo. Nós entramos com uma ação contra eles assinada por 200 mil pessoas, de toda a bacia do Rio Doce, todos os afetados, e isso foi pra um tribunal na Inglaterra. Porque o fórum deles é lá.

Entrevistadora- São multinacionais….

Ailton Krenak- É onde eles têm a sede deles, onde os acionistas se reúnem. Um ministro lá pegou a ação e disse “ah, mas isso aqui foi lá na beirada do mundo, eu não tô nem ouvindo”, e separou a ação. Nós recorremos à uma corte suprema, a corte chegou e falou: “não, não, isso aqui tem que julgar”. Então, nós estamos com uma mão no pescoço da Vale e a outra na BHP Billiton.

Nós já estamos sendo atendidos por uma ação emergencial, consequência dessas ações que nós fizemos. A ação emergencial é compensação financeira imediata, assistência às pessoas, suprindo elas com a água, com insumos, com as coisas que eles perderam por causa do rio, e uma ameaça pras empresas de que eles vão ter que pagar a vida inteira, uma assistência pra essas pessoas. Não a vida das pessoas, a vida da empresa. Enquanto a empresa existir, ela tem que pagar. Então, foi a primeira vez que um conjunto de comunidades, entrou com uma ação contra duas corporações globais e deram uma trava nelas e deixaram elas lá, pelo menos com uma chance de pegar uma “caneleira”.

Entrevistadora- Falando um pouco do X Fospa, que reúne essa rede de entidades nacionais e internacionais, o que tu consideras como “ideias que podem adiar o fim do mundo”, no que o Fospa, que reúne todos esses movimentos, pode contribuir?

Ailton Krenak- Mudando o jeito de pensar. Nós pensamos sempre reproduzindo o colonialismo. Uma lógica que é a do “progresso”, uma ideia de que a gente pode progredir. Isso é bobagem. Não tem nenhuma teoria, não tem nenhuma ciência que diz que a gente pode se desenvolver indefinidamente. O professor Ladislaw Dowbor diz que a única coisa que expande indefinidamente é o câncer. Então, se o capitalismo é essa doença, a gente tem que se cuidar contra ele. Não tem que ir no papo furado do progresso. O paradigma que precisa ser mudado é essa nossa ânsia por pertencer à esses lugares ricos do mundo. Como se o mundo inteiro pudesse ser um shopping. É óbvio que não, não dá. Vai ter o shopping em alguns lugares, o resto que se dane. Essa é a lógica do capitalismo.

O Davi Yanomami fala que nós estamos nos tornando a sociedade da mercadoria, que tudo é mercadoria, inclusive os outros. Tratamos uns aos outros como se fossem mercadorias. Criando essas diferenças entre nós, por raça, por cor, por classe social, por gênero. Todas essa discriminação que a gente reproduz, atrapalha um bem-viver, um viver melhor.

Como o próprio nome diz, ele é um Fórum, e ele ganhou uma configuração nos últimos anos de ser um fórum pan-amazônico, de convocar os países da bacia amazônica a atualizar as suas agendas de colaboração, cooperação, alianças, atuar em rede, e esse ano talvez ele esteja em seu melhor momento, nesse quesito pan-amazônico. Ele deixou de ser um Fórum pra atrair gente do mundo inteiro e passou a ser um fórum pra atrair os povos implicados com a sobrevivência na Amazônia. Tá de parabéns, eu acho que é a melhor edição do Fospa.

Krenak ao lado de Kátia Akrãtikatêjê e José Manuyama; , os três protagonistas do filme “Pisar Suavemente na Terra”, que teve pré-lançamento no X Fórum Social Pan-Amazônico.

Entrevistadora- Nós aqui do Pará temos uma exportação gigantesca de minérios, mas a gente não vê melhorias vindo pro nosso estado. Nós continuamos com um dos piores IDH’s do Brasil, nossa população é pobre, a guerra fundiária continua. Como você vê essa subserviência às grandes corporações mineradoras que retiram nossos minérios sem dar uma contrapartida social satisfatória aos Estados?

Ailton Krenak- É importante observar o seguinte. A economia global é um tabuleiro. Tem os lugares do mundo, tem os lugares do planeta, que eles já estão determinados como lugares de extrativismo do capitalismo. O capitalismo vai extrair tudo o que tiver nesses lugares. Florestas, minérios, água. Vai explorar isso com uma mão ampla, uma mão longa. Não é a mão local. O imposto, as taxas, o controle sobre a riqueza que é extraída, não são feitos, não é porque os governantes são omissos. É porque a história do capitalismo, ela tem uma dinâmica, ela funciona assim em qualquer lugar do mundo. Ele (o capitalismo) não tá fazendo isso especialmente pra nós, ela faz em qualquer lugar do mundo. Então, o capitalismo extrai de qualquer lugar da Terra, extrai tudo, tudo. Ele não tem racionalidade. Apesar de dizerem que a economia capitalista é racional, ela não tem racionalidade. Na verdade, ela é uma espécie de um Frankstein, que sai comendo tudo. Não tem racionalidade humanista.

Se tivesse, não tinha uma guerra na Ucrânia agora disputando gás natural, disputando energia. A Rússia tá dizendo assim: eu não vou dar energia pra Europa, a Europa que se dane. Acontece que a Rússia é na Europa. Que racionalidade que tem numa palhaçada dessas? E nós vamos sair da vida abundante da floresta, pra imitar os Europeus? Nós vamos imitar eles? Eles não estão conseguindo resolver nem as questões locais deles.

Entrevistador- Parte da intenção realizada aqui, é de apresentar novas concepções sobre essa realidade tradicional, sustentável e plural amazônida. Você acha que o Fospa tá contribuindo nessa retomada de compreensão das ideias que você propõe?

Ailton Krenak- Eu acho que está sendo uma espécie de iniciação à outras epistemologias… A gente tá fazendo um trabalho na universidade, com o objetivo de alterar a veiculação de ideias dentro da universidade. Porque se a universidade reproduz a ideia colonial, a gente precisa dar um remédio pra universidade parar de reproduzir o colonialismo e começar a produzir pesquisa, saberes, conhecimento, novas compreensões. O próprio ecossistema que a gente vive, a biosfera do planeta Terra. Quando a gente tiver entendido que a gente vive dentro do organismo do Planeta Terra, aí sim, a gente vai tá começando a mudar o paradigma de povo disperso e indiferente ao seu próprio território. Porque se a gente fosse mais implicado com os nossos territórios, os nosso inimigos não ficariam tão folgados.

Entrevistadora- E essa linguagem em audiovisual agora, das produções de documentários, de filmes, elas estão conseguindo mostrar a luta e a resistência a partir de novos olhares, a gente vê que as pessoas se sensibilizam mais facilmente quando vêem numa tela maior, ou em imagens num roteiro bem pensado e imagens bem produzidas. Qual a importância dessa nova produção audiovisual pra mostrar a luta de vocês pro mundo?

Ailton Krenak- Então, essa coisa da tecnologia é um paradoxo. Quanto mais tecnologia parece que é melhor né? Acontece que pra ter essa tecnologia toda é que estão comendo a Terra. Então é como se o cachorro estivesse mordendo o próprio rabo. A gente melhora a nossa capacidade de denúncia, e os nossos inimigos melhoram a capacidade de devorar a gente.

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